sábado, 16 de abril de 2022

Quantas vidas um gato pode salvar?

Meu nome é Aracely Schettine Paiva, sou Psicóloga e atualmente estou Gerente do CAPS ad III de Vitória da Conquista, na Bahia (fui Psicóloga deste mesmo serviço por 8 anos). Gostaria de partilhar com vocês a história de um “serumaninho” que ganhou o coração da equipe, dos usuários e seus familiares no CAPS ad III.

Ele chegou em Junho de 2019, trazido por um técnico para ser doado a uma pessoa que antes de buscá-lo, teve que desistir dele por questões muito particulares. Em apenas 2 dias, ele ganhou o coração de toda a equipe. No auge dos seus 45 dias de vida e totalmente desprovido de graça, alguma coisa que ainda não entendíamos naquele momento, fez com que a equipe se conectasse a ele. Os técnicos fizeram então uma comissão e vieram falar comigo, pedir para que ele ficasse e fosse “nosso”. Dentro de mim ecoou um não racional, mas por um instante fui tomada por uma memória fotográfica de uma imagem de Nise serenamente sentada, cercada de gatos e livros, e voltei a mim e disse que sim, mas com a condição de castrá-lo, vermifugá-lo, providenciarem uma cama, itens para se alimentar, caixa de transporte e frequência de banhos e de visitas no veterinário. E sim, eles aceitaram com largos e emocionado sorrisos diante de mim. Foi batizado de Toddynho, mas para os “mais íntimos” ele é Toddysmar.

Como um bom gato que ele é, circula e toma pra si todos os espaços: cadeiras dos técnicos, salas de atendimento, balcão da recepção, cadeira da Gerência, caixas de prontuários separados para atendimento, jardim interno e externo, janelas (independente da altura!), chão do refeitório, sala de oficina, quartos dos usuários. Sim, ele se aboleta lá com frequência, e não é incomum até dormir com eles, principalmente nos dias mais frios.

Por sermos formato III, acolhemos em sistema intensivo usuários para cuidados mais sistemáticos. E com estes usuários ele tem uma relação especial de afeto e parceria. Na nossa sociedade, temos uma cultura de criar animais domésticos e muitos usuários projetam nele, memórias e afetos dos seus animais que deixaram em casa, ou já se foram de suas vidas por diversos motivos. Já vimos cenas muito lindas e inusitadas: usuário projetando afetos por um gato “perdido em partilha” com ex companheira que ficou com a guarda do animal, usuário acolhido usando meia furada no dedão com fiozinho de linha aparente pra Toddynho brincar (me ofereci pra costurar e ele me deu essa explicação ao negar a ajuda!), usuário recebendo alta e abraçando ele com muita afetividade e declarando que irá sentir saudades, tentativa de levar ele embora por um usuário que foi flagrado colocando ele numa mochila (sim, ele confessou, foi pego em flagrante...) e usuário recebendo alta e deixando uma carta de despedida com recomendações de cuidado e promessa de retorno para vê-lo.

Sim, os animais têm esse poder: despertar afetos, ofertar afetos, trazer alegria ao correr atrás de uma bolinha de papel ou simplesmente nos fazer sorrir por se jogar de barriga para cima se esticando todo já pedindo para ter a barriga alisada. Percebo uma dinâmica bem interessante entre os técnicos, pois quando já chegam abatidos ou estressados por suas vivências extra CAPS ad, ou quando são afetados por algo que os desorganiza na própria rotina, uma busca quase unânime começa a acontecer a partir da pergunta: “Cadê Toddysmar?”, e lá vai ele com toda a sua disponibilidade felina começar a brincar de fazer de conta que vai deixar a gente pegar ele e dá uma corridinha marota e se joga no chão, já esperando o chamego. Presenciei uma cena com ele, ao abrir a porta da sala em que um dos nossos Psiquiatras atendia. Fui solicitar a confecção de uma receita para ele ao ver o usuário que ele atendia saindo, e ao abrir a porta, Toddynho estava deitado na mesa, com sua barriga sendo alisada pelo colega enquanto este evoluía no prontuário. Por um instante acreditei que ele estava indevidamente sendo invasivo estando ali. Eu prontamente o peguei no colo para retirá-lo de cima da pilha de prontuários, e o colega me olhou com expressão de pesar, mas começou a fazer a receita. Enquanto isso, continuei a alisar ele de barriga para cima em meu colo. O colega então terminou a receita e lançou um olhar de ternura surpreendente (ele é uma pessoa bem séria e se expressa assim na maior parte do tempo), e então deu um sorriso terno e de admiração diante da cena e disse “poxa, o meu não deixa eu alisar ele na barriga assim”. E mais uma vez Toddynho provou a beleza dos afetos que desperta.

Sim, gatos são disponíveis para o afeto, basta que recebam para que ofertem, eles não são interesseiros, são coerentes nas suas trocas afetivas, só dão o que recebem. Lembrei-me neste dia de um artigo que li que citava cartas e relatos de José Carlos Peliano em que ele relata encantos e inquietações de seus encontros com Nise, e num momento relatado por ele, um dos gatos dela pula em seu colo e ela lhe diz: “não se mexa, não tire-o do colo, o gato só vem a você se ele percebe seus sentimentos. Ele gostou de você”. E fui testemunha de um momento assim, em que eu acolhia uma mulher trans e Toddynho pulou pela janela da sala, andou até ela e pulou em seu colo já ronronando e se aconchegando; ela já estava emocionada relatando suas dores e  soltou um sorriso em meio ao choro nesse momento e disse “que lindo ele, que bom saber que alguém quer meu colo e quer me dar amor”.


Peliano relata em suas publicações, que “Nise dizia que os gatos são “excelentes companheiros de estudos, amam o silêncio e cultivam a concentração” e admirava a independência dos felinos, sempre ronronando ao seu redor no escritório. “Cultivo muito a independência. Por isso gosto do gato. Muita gente não gosta pela liberdade de que ele precisa para viver. No circo você vê tigre e urso, mas não vê um gato. O gato é altivo, e o ser humano não gosta de quem é altivo.”. Não é incomum relatos dos técnicos na supervisão dos casos, mencionarem que Toddynho é citado por usuários em atendimento refletindo sobre sua autonomia, sua afetividade e sua capacidade de quebrar tabus e preconceitos seus próprios e de familiares que acreditaram em algum momento na vida que “gato preto dá azar”. Como um deles bem disse: “Gato preto não dá azar, dá amor”

Nise estava certa, quando defendia que conviver com animais era terapêutico e que estes são capazes de favorecer a conexão afetiva das pessoas com sua própria humanidade. Em seu livro “Gatos e a emoção de lidar” ela defendia que para as pessoas com sofrimentos mentais, os animais eram a sua única linha de vida para a saúde mental. E eu acredito nisso também.

 














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