Meu nome é Aracely Schettine Paiva, sou Psicóloga e atualmente estou Gerente do CAPS ad III de Vitória da Conquista, na Bahia (fui Psicóloga deste mesmo serviço por 8 anos). Gostaria de partilhar com vocês a história de um “serumaninho” que ganhou o coração da equipe, dos usuários e seus familiares no CAPS ad III.
Ele chegou em Junho de
2019, trazido por um técnico para ser doado a uma pessoa que antes de buscá-lo,
teve que desistir dele por questões muito particulares. Em apenas 2 dias, ele
ganhou o coração de toda a equipe. No auge dos seus 45 dias de vida e
totalmente desprovido de graça, alguma coisa que ainda não entendíamos naquele
momento, fez com que a equipe se conectasse a ele. Os técnicos fizeram então
uma comissão e vieram falar comigo, pedir para que ele ficasse e fosse “nosso”.
Dentro de mim ecoou um não racional,
mas por um instante fui tomada por uma memória fotográfica de uma imagem de
Nise serenamente sentada, cercada de gatos e livros, e voltei a mim e disse que
sim, mas com a condição de castrá-lo, vermifugá-lo, providenciarem uma cama,
itens para se alimentar, caixa de transporte e frequência de banhos e de
visitas no veterinário. E sim, eles aceitaram com largos e emocionado sorrisos
diante de mim. Foi batizado de Toddynho, mas para os “mais íntimos” ele é
Toddysmar.
Como um bom gato que
ele é, circula e toma pra si todos os espaços: cadeiras dos técnicos, salas de
atendimento, balcão da recepção, cadeira da Gerência, caixas de prontuários
separados para atendimento, jardim interno e externo, janelas (independente da
altura!), chão do refeitório, sala de oficina, quartos dos usuários. Sim, ele
se aboleta lá com frequência, e não é incomum até dormir com eles, principalmente
nos dias mais frios.
Por sermos formato
III, acolhemos em sistema intensivo usuários para cuidados mais sistemáticos. E
com estes usuários ele tem uma relação especial de afeto e parceria. Na nossa
sociedade, temos uma cultura de criar animais domésticos e muitos usuários
projetam nele, memórias e afetos dos seus animais que deixaram em casa, ou já
se foram de suas vidas por diversos motivos. Já vimos cenas muito lindas e
inusitadas: usuário projetando afetos por um gato “perdido em partilha” com ex
companheira que ficou com a guarda do animal, usuário acolhido usando meia
furada no dedão com fiozinho de linha aparente pra Toddynho brincar (me ofereci pra costurar e ele me deu essa
explicação ao negar a ajuda!), usuário recebendo alta e abraçando ele com muita
afetividade e
declarando que irá sentir saudades, tentativa de levar ele embora por um
usuário que foi flagrado colocando ele numa mochila (sim, ele confessou, foi
pego em flagrante...) e usuário recebendo alta e deixando uma carta de
despedida com recomendações de cuidado e promessa de retorno para vê-lo.
Sim, os animais têm
esse poder: despertar afetos, ofertar afetos, trazer alegria ao correr atrás de
uma bolinha de papel ou simplesmente nos fazer sorrir por se jogar de barriga para
cima se esticando todo já pedindo para ter a barriga alisada. Percebo uma
dinâmica bem interessante entre os técnicos, pois quando já chegam abatidos ou
estressados por suas vivências extra CAPS ad, ou quando são afetados por algo
que os desorganiza na própria rotina, uma busca quase unânime começa a
acontecer a partir da pergunta: “Cadê
Toddysmar?”, e lá vai ele com toda a sua disponibilidade felina começar a
brincar de fazer de conta que vai deixar a gente pegar ele e dá uma corridinha
marota e se joga no chão, já esperando o chamego. Presenciei uma cena com ele,
ao abrir a porta da sala em que um dos nossos Psiquiatras atendia. Fui
solicitar a confecção de uma receita para ele ao ver o usuário que ele atendia
saindo, e ao abrir a porta, Toddynho estava deitado na mesa, com sua barriga
sendo alisada pelo colega enquanto este evoluía no prontuário. Por um instante
acreditei que ele estava indevidamente sendo invasivo estando ali. Eu
prontamente o peguei no colo para retirá-lo de cima da pilha de prontuários, e
o colega me olhou com expressão de pesar, mas começou a fazer a receita.
Enquanto isso, continuei a alisar ele de barriga para cima em meu colo. O
colega então terminou a receita e lançou um olhar de ternura surpreendente (ele
é uma pessoa bem séria e se expressa assim na maior parte do tempo), e então
deu um sorriso terno e de admiração diante da cena e disse “poxa, o meu não deixa eu alisar ele na barriga assim”. E mais uma
vez Toddynho provou a beleza dos afetos que desperta.
Sim, gatos são
disponíveis para o afeto, basta que recebam para que ofertem, eles não são
interesseiros, são coerentes nas suas trocas afetivas, só dão o que recebem.
Lembrei-me neste dia de um artigo que li que citava cartas e relatos de José
Carlos Peliano em que ele relata encantos e inquietações de seus encontros com
Nise, e num momento relatado por ele, um dos gatos dela pula em seu colo e ela
lhe diz: “não
se mexa, não tire-o do colo, o gato só vem a você se ele percebe seus
sentimentos. Ele gostou de você”. E
fui testemunha de um momento assim, em que eu acolhia uma mulher trans e
Toddynho pulou pela janela da sala, andou até ela e pulou em seu colo já
ronronando e se aconchegando; ela já estava emocionada relatando suas dores e soltou um sorriso em meio ao choro nesse
momento e disse “que lindo ele, que bom
saber que alguém quer meu colo e quer me dar amor”.
Peliano
relata em suas publicações, que “Nise
dizia que os gatos são “excelentes companheiros de estudos, amam o
silêncio e cultivam a concentração” e admirava a independência dos felinos,
sempre ronronando ao seu redor no escritório. “Cultivo muito a independência.
Por isso gosto do gato. Muita gente não gosta pela liberdade de que ele precisa
para viver. No circo você vê tigre e urso, mas não vê um gato. O gato é altivo,
e o ser humano não gosta de quem é altivo.”. Não é incomum relatos dos
técnicos na supervisão dos casos, mencionarem que Toddynho é citado por
usuários em atendimento refletindo sobre sua autonomia, sua afetividade e sua
capacidade de quebrar tabus e preconceitos seus próprios e de familiares que
acreditaram em algum momento na vida que “gato preto dá azar”. Como um deles
bem disse: “Gato preto não dá azar, dá
amor”
Nise estava certa, quando
defendia que conviver com animais era terapêutico e que estes são capazes de
favorecer a conexão afetiva das pessoas com sua própria humanidade. Em seu
livro “Gatos e a emoção de lidar” ela defendia que para as pessoas com sofrimentos mentais, os animais eram a sua única linha
de vida para a saúde mental. E eu acredito nisso também.
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