terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Crítica “ás barras de ferro retorcidas da estrutura de nossos aleijos educacionais” (Muganzé, Cabruêra)



Em algum momento da vida, acredito que todas as pessoas deveriam parar para refletir sobre suas vivências – aprendizagens, frustrações, planos, metas, sentimentos aflorados nas situações de vitória e derrota, descobertas, insucessos, dificuldades, experiências.

O que acontece em muitos casos, é que reflexões desse tipo acontecem somente quando as pessoas passam por traumas que as deixam acamadas como doenças, cirurgias em que há risco eminente de morte e que elas sobrevivem, ou perdas emocionais significativas.

Mas, no meu caso, estou tendo a chance de fazer o meu memorial pessoal mobilizada por uma avaliação da Pós Graduação em Saúde Mental. O foco será os momentos de aprendizagem educacional do período referente á graduação em Psicologia na UFPB, realizada entre 1998 e 2004. No entanto, considerando que devido à práticas educacionais equivocadas das quais fui vítima e que tem ecos até hoje em minha vida, destacarei alguns relatos de períodos anteriores da pré-escola, do ensino fundamental e do ensino médio.

E por uma questão de saúde mental, digo: resgatemos hoje os pormenores e “pormaiores” de nossas vidas, porque a hora de viver é agora, e não há presente e futuro, sem faxinar o passado. Faço este convite agora a você.



Educação Infantil ou a negação da integralidade do corpo
Escola Padre Gilberto Vaz Sampaio – Dia das Mães, no Taquara. 1984.

A primeira experiência na escola é cercada de emoções desconhecidas, sensações difíceis de nominar. Curiosidade, insegurança, vontade, tudo isso se mistura a mundo totalmente desconhecido pra uma criança de 5 anos.

Fiz o chamado período preparatório, uma espécie de Jardim I, numa escola pública onde minha mãe trabalhava. Na minha primeira experiência de aprendizado em que aprendi a escrever meu nome, vivenciei a negação da integralidade do meu corpo. Sou canhota, escrevo com a mão esquerda, e ouvi da minha professora “Não é assim Aracely! Escreva com a mão certa!”. Ela me orientou a escrever com a mão direita, mão essa que não tinha pressão sobre o lápis nem coordenação motora estruturada. Lembro-me de quando ela saía da sala, eu me debruçava sobre mim mesma, escondendo a mão esquerda que teimava em escrever meu nome, mas era só ela entrar na sala, que minha estratégia ia por água abaixo. E mais uma vez escutava: “Não é assim Aracely! Escreva com a mão certa!”. Angustiada, contei á minha mãe, que intercedeu por mim e reforçou a importância de eu escrever com a mão que tinha habilidade para tanto. Resultado disso: fiquei com uma seqüela de lateralidade que perdurou por um tempo: eu escrevia meu nome, com a mão esquerda, com efeito espelho, ou seja, de trás para frente.

Terminado esse período, fui para a alfabetização numa tradicional escola particular da cidade, muito bem conceituada e mais uma vez vi sendo negada a integralidade do meu corpo. Lá eu podia escrever com a mão esquerda, no entanto não havia cadeiras adaptadas para canhotos. Na minha astúcia de criança, colocava uma cadeira ao lado da minha, mas não era autorizada a mantê-la lá, pois bagunçava as filas que deveriam ser certinhas. Pensei num plano B então: virar a cadeira com o braço direito para a lateral da fila e colocar minha perna pelo buraco do braço da cadeira, fazendo uma espécie de mesinha para escrever, mas também fui impedida todas as vezes, porque “mocinha de família não senta de pernas abertas”. Resultado disso: desenvolvi um desvio na coluna que me prejudica até hoje, com 32 anos: meu lado esquerdo do corpo é mais alto que o direito, pois eu projetava o ombro esquerdo na direção do centro do corpo na tentativa de esticar meu braço e mão esquerda até o braço direito da cadeira. Tenho fortes crises no ciático da perna esquerda, pois ele é mais esticado que o normal e também uma pressão sobre o nervo trigêmio que se estende da base do pescoço até o alto da cabeça, o que me gera fortes dores na região craniana e também pressão sobre a estrutura do aparelho auditivo no lado esquerdo.

Identifico que a tendência pedagógica da qual fui “vítima” era a Tendência Liberal Tradicional, pois se baseava na preparação moral dos alunos, não considerava as particularidades de cada um, o professor tinha autoridade máxima, no silêncio de uma turma inteira de crianças saudáveis a demonstração de legitimação desta autoridade. O foco de toda a fonte de informações e pesquisas eram as enciclopédias lotadas de ácaros e não estimulava o “arriscar-se” nas vivências do dia-a-dia. Estudei nessa última escola todo o ensino infantil.



Ensino Fundamental e Médio

Quando se pensa num colégio de padres, vêm logo a cabeça: controle! Mas acredito que origem italiana, deu a eles uma certa suavidade nada típica em clérigos daquela época. Vivenciei 6 anos de estudos nesta escola, e tive minhas primeiras experiências emancipadoras aí. Gincanas com temas sociais, vivências de pesquisa de campo, esportes… Peraí, aqui faço um parênteses – na 5ª série, entrei na fila pra escolher junto ao professor de educação física qual esporte gostaria de fazer, e disparei quando chegou minha vez: “ Eu quero jogar futsal”. Um silêncio, uma expressão amarrotada na cara e o professor disparou: “Querida, mulher nunca vai jogar futebol nesta vida. Escolha outra coisa”. Hoje me pergunto: será que ele conhece a Marta, a Pretinha, a Cristiane? E lá fui eu fazer ginástica. Me sentia uma macaquinha de circo, repetindo aqueles movimentos sem por quê. Não suportei muito tempo, da 7ª série em diante, entrei com atestado médico todos os anos.

Meu fantasma escolar oficial sempre foi a matemática, e no ensino fundamental descobri o gosto da derrota em notas que me geravam depressão e revolta: afinal o problema era comigo, com a matemática ou com a forma com que ela era ensinada? Cabe salientar que tive ótimos professores nessa escola, mas a professora de matemática tinha cheiro de ditadura militar. Vivi nos porões delas (da professora e da matemática) por 5 anos até sofrer a primeira pausa dolorosa na minha vida escolar: fui reprovada no 1º ano, numa prova de matemática de recuperação, em que 4 folhas de questões me desafiavam, e em quatro horas fiz as duas primeiras com um apuro tão grande que seu aproveitamento foi de 100%! Mas não fora suficiente: minha evolução evidenciada naquela prova não servia de parâmetro avaliativo. Afinal matemática quer números e meu número foi: 3,5. Reprovadíssima, frustradíssima, revoltadíssima. Após este episódio, joguei a toalha e pedi pra sair.

Outras vivências seriam trágicas se não fossem cômicas: uma enorme fila todo dia para entrar na área das salas, e na porta de passagem a inspetora de disciplina conferindo se nossas meias eram pretas; uma fuga em massa dos alunos da 7ª série pelo quintal do prédio do módulo do ensino infantil (a gente só queria comer um lanche mais barato na padaria que ficava a poucos metros da escola); assistir The Wall, do Pink Floyd na sala de vídeo, que fora passado pelo professor de geografia, escondido da Direção, e sair marchando de lá enquanto a inspetora parecia louca no corredor gritando e batendo aquele sino irritante e falando “Parem com isso, não é 7 de setembro!!!”; abri mão de uma nota 9 numa prova de Química/Física na 8ª série porque fui a única que passou e por não achar justo, liderei o movimento de anulação da prova (escutei do meu professor: “Você é muito burra. Vai ver o que vai acontecer na segunda prova”. A turma toda estudou junta, a maioria passou, eu tirei 7 e senti o gosto de justiça na boca); guerra de saco plástico cheio de água na quadra, e sobrou pra todo mundo, inclusive a tal inspetora de disciplina e o diretor-Frei da escola: afinal tava fazendo muito calor!

Percebo essa escola, como aderente á tendência liberal tecnicista. A idéia central era modelar o comportamento, organizando passo a passo a aquisição de habilidades, atitudes e conhecimentos com atividades programadas previamente, de forma a nos conduzir a um ensino médio que fosse sustentável e eficiente de forma a nos favorecer no processo de vestibular. Tudo bem, tenho que reconhecer que alguns professores aderiam à Tendência Liberal Renovada não-diretiva, pois nos estimulavam ao auto-conhecimento, inovavam nas técnicas de ensino, se libertavam e nos libertavam, mas uma verdade precisa ser dita: eles não eram bem vistos por isso, não.

Mas havia vida após a reprovação. E fui estudar numa cooperativa educacional, onde também vivenciei experiências libertadoras, exploratórias, e onde me vi realmente envolvida com a construção do conhecimento. È claro que a preocupação com o vestibular era o cerne do processo, mas havia também um compromisso em instrumentalizar os alunos com conhecimento vivo e pertinente á vida real. Lá estudei Filosofia e Sociologia com livros e discussões que fui reencontrar na universidade, fiz curso de Fotografia, Gincana Cultural, Exposições de produções artísticas livres dos alunos, entre várias outras atividades inesquecíveis. Fiz o 1º e 2º anos do ensino médio nesta cooperativa. Esta escola adotava a Tendência Liberal Renovada não-diretiva.


COEDUC – Vivência Lúdicas no Banheiro – Curso de Fotografia com Sabiá. 1994.


No 3º ano, fui para uma Escola Católica, mas a liturgia não era tão evidente lá. Nesta, o foco era o vestibular mesmo, sem meias palavras. A tendência pedagógica era a liberal tecnicista, pois a abordagem era totalmente focada em nossa preparação para o vestibular, tínhamos pouca liberdade para propor mudanças nas práticas e atividades, éramos bombardeados pelos conhecimentos específicos para o vestibular, e a aprendizagem era voltada para a modificação do desempenho sempre para melhor, afinal a Universidade era um leão de boca aberta prestes a nos engolir!


UFPB: eu era Fênix e não sabia…


Não passei no primeiro vestibular. Eu e milhões de estudantes. Não me deprimi por isso. E fui estudar em Salvador, um lugar pra mim até então de férias e agora seria minha casa. Após um ano bastante difícil e enriquecedor estudando em Salvador, num famoso curso pré-vestibular, líder em aprovação. E como eu sonhei em ver meu nome no encarte especial da Veja Bahia entre os aprovados do Mendel… E tive! Estou lá! E um novo mundo se abriu: mudei de mala, cuia, medos e vontade de viver para João Pessoa, na Paraíba, onde fiz meu curso de Licenciatura e Formação em Psicologia na Universidade Federal da Paraíba.

A sensação que tenho hoje quando reflito sobre tudo que vivi lá, é que eu estava morta, como a Fênix, mas renasci das cinzas. Nada do que eu vivera até então se compara ao que vivi lá.

Fiz meu curso? Sim claro, mas fiz muitas outras coisas: fui militante estudantil (daquelas que invadem o gabinete do reitor com uma bandeja do Restaurante Universitário para provar que o cuscuz que nos era servido tinha cheiro de barata; daquelas que se acorrenta em portões sob os olhares da Polícia Federal para impedir a abertura dos portões da universidade num protesto contra o fechamento daquele mesmo Restaurante Universitário que nos servia cuscuz com cheiro de barata).

Fui militante cultural, membro de ONG de educação ambiental, estudei dança do ventre e percussão popular nos projetos de extensão da UFPB, realizei eventos culturais de grande porte dentro e fora da universidade, freqüentava com a mesma intensidade as atividades dos cursos de História, Filosofia, Letras, Serviço Social, a ponto de muita gente nem saber que curso afinal eu fazia. Ai ai, eu era a inquietação em pessoa.


Fiz estágio em Hospital Psiquiátrico no 5º semestre, hospital esse que me convidou a posteriori para continuar atendendo lá pelos bons resultados do meu trabalho – foi no momento do meu contato com a Loucura e o sofrimento causado pela dependência química que descobri como somos pequenos, limitados, porém gigantes e imensos, porque o ser humano pode ser tudo isso: junto, misturado, embolado e andando… Haviam dias que saía de lá chorando, haviam dias que saía de lá sorrindo e agradecia sempre a Deus por ter a chance de pelo menos em alguns instantes lançar um olhar humano sobre aquelas pessoas, ganhar seus sorrisos banguelos, seus abraços descontrolados, escutar discursos desconexos mas por vezes muito metafóricos, tradutores das dores que cada um lá carregava. Essa vivência no Hospital São Pedro me re-humanizou.

Na UFPB, eram prementes a Tendência Liberal Renovada não-diretiva, a Tendência Progressista Libertadora e a Tendência Progressista Crítico-social dos conteúdos.
Havia preocupação com a formação das atitudes, incentivo ao autodesenvolvimento e a motivação era fator de auto-realização; o aprendizado se baseava na modificação crítica das percepções; frisava-se constantemente o papel do futuro profissional na transformação da sociedade; a problematização da prática de vida era a fonte de geração de debates, os conteúdos tradicionais era negados; o diálogo era autêntico e horizontal entre educador-educando; aprendíamos a ler o mundo a partir do conhecimento da realidade concreta; os saberes eram trocados e valorizados.


Palestra de Aleida Guevara (a filha do Ernesto Che Guevara) 
sobre Saúde e Educação em Cuba. UFPB. 2002.


Éramos incentivados a aderir aos projetos de extensão, pois a Universidade era o espaço de transformação da realidade; mas também éramos preparados para as contradições do mundo através de praticas socialmente organizadas e que abriam espaço para a vivência real da democratização da sociedade; os conteúdos vivos, concretos, indissociáveis da realidade social; tínhamos um contato intenso através dos trabalhos de campo com o conhecimento popular e transpúnhamos essas percepções ao conhecimento sistematizado; a construção do conhecimento se dava num processo de prática real, seguida da consciência dessa prática e da sua reelaboração, com a orientação do professor.

Tem uma frase que me moveu desde que comecei minha faculdade, e é do Che Guevara. Não me lembro literalmente a mesma, mas dizia que a maior qualidade de um militante é indignar-se diante de qualquer injustiça, cometida contra qualquer pessoa, em qualquer tempo. E é isso que me move até hoje: a indignação que transforma minhas atitudes em instrumento de transformação da minha vida e da vida dos que se entrelaçam na minha.


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